Publicado em 19/09/2018

O setor de transportes rodoviário de cargas e o movimento grevista: momento para muita reflexão (“Da boleia do caminhão à nau dos insensatos”)

São diversos os motivos pelos quais o Brasil tem uma logística que “deixa muito a desejar”. Pesquisas a respeito indicam que o país conta com uma estrutura logística aquém de suas reais necessidades, principalmente considerando o tamanho de sua população e suas dimensões territoriais. Muito inferior à tudo aquilo que se encontra na maioria dos países emergentes e desenvolvidos, a falta de investimentos, a má utilização dos recursos, a confusão regulatória, a confusão institucional, a complexa política tributária, as intermináveis discussões ideológicas e a incompetência parecem caracterizar as atividades voltadas à logística. 

O assunto não é novo, vem sendo discutido há muitos anos e agora, em época de eleições, bastante comentado por todos os candidatos. E é bom que assim seja, pois a “falta de investimentos em infraestrutura (geral e de transportes em particular) contribuirá para o altíssimo custo e pela baixa produtividade da produção e da economia como um todo”, foi minha conclusão já em 2005 ao escrever artigo para o jornal Folha de Alphaville (“Brasil: Política Monetária ou Política Econômica?”). Infelizmente, de lá para cá, muito pouco se fez e as consequências são claramente percebidas. 

Uma das consequências, sem dúvida, é que o transporte de cargas no Brasil é caro (56% dos custos logísticos, segundo dados do ILOS de 2017) e, sob os pontos de vista da qualidade e da pontualidade, é realizado em condições discutíveis. Demasiadamente dependente do modal rodoviário, este modal representa mais de 60% do total das cargas movimentadas quando calculado com base na tonelada por quilômetro útil transportado (TKU). Nos EUA, por exemplo, o transporte rodoviário representa cerca de 30% do total, no Canada, 43%, na Rússia, 8% e na Índia, 50%. O transporte aquaviário nos EUA é equivalente a 24%, enquanto no Brasil é de apenas 13%. O ferroviário na Rússia é 81%, enquanto no Brasil é de apenas 21%. Mesmo assim é importante observar que o País, mesmo no modal rodoviário, também é carente. Comparando a quantidade de quilômetros de estradas asfaltadas por sua área territorial (km de estradas asfaltadas por 1000 km² de território), o Brasil tem cerca de 186 km de estradas asfaltadas por 1000 km². A China tem 400 km, os EUA quase 700 km, a Índia mais de 1 mil km, a Espanha supera os 1,3 mi km, a França mais de 1,8 mil km e o Japão tem mais de, incríveis 3,2 mil km de estradas asfaltadas a cada 1000 km² de território, segundo dados do Anuário Exame de Infraestrutura.

Esse cenário tem como uma de suas principais causas, a falta de investimentos no setor, pois conforme demonstram estudos da Consultoria Inter.B, realizados para o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), as quedas nas taxas de investimentos em transporte (todos os modais) foram regras nos últimos anos: de 1,08% do PIB em 2010, foi para 0,96% em 2013 e 0,59% em PIB em 2017, com expectativa de alcançar 0,61% em 2018!  Pior do que isso, só o fato de que muitos dos investimentos realizados são discutíveis quando analisados sob o ponto de vista da integração, da qualidade, da oportunidade e de seu custo.

Os impactos são conhecidos. Desde a baixa qualidade da maioria das estradas brasileiras, passando pelos altos índices de roubo de cargas e de acidentes, pelos desnecessários dispêndios oriundos do excesso de tempo operacional, pelo excesso de burocracia diante do exagerado número de órgãos intervenientes (e onde ‘todos mandam’) e da alta idade média da frota, parece que tudo conspira para que o transporte rodoviário de cargas, mesmo preponderante na matriz de transporte, ainda exerça suas funções com razoável grau de ineficiência e altos custos.

A ANTT (Agência Nacional de Transporte Terrestre) tem registrado um total de 1,82 milhão de equipamentos, dos quais 65% são veículos com tração. Os 35% restantes são reboques e semirreboques, isto é, precisam estar acoplados aos veículos com tração. Os caminhoneiros autônomos, por sua vez, são proprietários de 46,3% da frota com tração, o que lhes garante exercer papel essencial nas atividades de transporte de cargas por rodovia no Brasil, pois é o equipamento de tração que de fato transporta a carga, seja sobre sua própria carroceria (caminhão) ou “puxando” um equipamento sem tração (reboque ou semirreboque).

Essa estrutura, com quase a metade da propriedade dos veículos de tração nas mãos de caminhoneiros autônomos, foi construída ao longo do tempo, na medida em que as empresas e cooperativas de transporte, os operadores logísticos e os próprios embarcadores, para diminuírem seus custos fixos (equipamentos, motoristas contratados via CLT e serviços de compras e de manutenção) e ficarem menos vulneráveis às oscilações de mercado e da sazonalidade, foram terceirizando, sempre que possível, essas atividades. Em alguns casos apenas contratando o caminhoneiro e seu veículo com tração (cavalo-mecânico ou caminhão) e em outros também se incluía o veículo tracionados (carreta e semirreboque). O que se vê hoje é que a maioria das empresas de transporte ou operadores logísticos atua com frotas própria e de terceiros ao mesmo tempo, sendo que a participação de cada uma delas no total, varia em função de estratégias empresariais ou simples análises de ‘trade-off’. 

Em operações mais específicas, ou até mesmo consideradas estratégicas pelo embarcador, nas quais há a necessidade de se utilizar carretas especiais e muitas vezes somente dedicadas àquelas operações, o interesse do caminhoneiro autônomo em ter a sua propriedade é muito menor, posto que essas especificidades não favorecem a flexibilidade exigida, uma vez que eles precisam estar, o maior tempo possível, fazendo seus equipamentos “rodarem com cargas”. Isso, e o custo maior de um equipamento especial, explicam em parte porque, ainda segundo os registros da ANTT, 78,3% dos equipamentos sem tração são de propriedade das empresas de transporte e apenas 21,7% estão nas mãos dos caminhoneiros autônomos. 

É óbvio que há outros motivos para que os serviços de transporte carga rodoviário fossem “terceirizados” e um deles é a alta produtividade da frota de motoristas autônomos, quando comparada com a produtividade da frota na mão de empresas que contratam motoristas como empregados via CLT. Não é uma regra geral mas, quem estuda ou trabalha no setor sabe bem quais as diferenças, vantagens e desvantagens entre um e outro. Aliás foi essa alta produtividade do autônomo que deu, ao transporte rodoviário de cargas, seu merecido lugar de destaque, já que para algumas atividades, produtos, setores econômicos ou regiões, e até por falta de outros modais, o transporte rodoviário de cargas tornou-se imbatível. Não é à toa que ainda se diz que “sem caminhão o País para”.

Enquanto os volumes transportados eram suficientes para fazer com que toda essa frota de autônomos e de empresas “rodasse” quase que o tempo todo com cargas, as reclamações eram pontuais, menos intensas e limitavam-se a alguns setores mais afetados. E quando os custos aumentavam (quaisquer deles), a alternativa era sempre repassar os custos para o contratante, através do aumento do preço do frete, fosse ele cobrado de uma empresa de transporte ou diretamente de um embarcador. Com demanda por serviços de transporte maior que a oferta, esses problemas eram sempre minimizados.

Porém, como é de se presumir, na medida em que os volumes de cargas para transporte foram diminuindo, as empresas, sempre que possível e como primeira providência, deixavam de utilizar os autônomos e privilegiavam a frota própria. Até certo ponto, uma medida administrativa aceitável. A ociosidade da frota e todos os custos fixos decorrentes ficavam apenas nas contas dos autônomos. Tudo se modifica, entretanto, quando a demanda diminui ainda mais e essa ociosidade e custos fixos correspondentes começam a afetar também as empresas de transporte, obrigando-as a diminuir o aproveitamento da própria frota. Estudos realizados pelo ILOS (Instituto de Logística), em 2017 foram movimentadas 1,64 trilhão de toneladas por quilômetro útil (TKUs) em todos os modais, ou seja, 2,7% menos do que 2014. No modal rodoviário essa queda foi ainda maior: menos 9,7% entre 2014 (1,13 trilhão de tku’s) e 2017 (1,02 trilhão de tku’s). Dados do ILOS indicam que nos últimos três anos, entre 2015 e 2017, enquanto o PIB brasileiro decresceu 5,95% a Demanda por Transporte Rodoviário de Cargas teve queda de 9,61%!

E se as empresas de transporte passaram a ter problemas, imagine-se o que aconteceu com os autônomos, que têm, no custo fixo (seu próprio caminhão) seu principal componente de custos. A recessão brasileira e a crise econômica dos últimos anos não só aumentaram a ociosidade do setor de transportes de carga, como também inibiram o automático repasse de custos para os embarcadores e consumidores finais. A crise afetou a todos.

Com certeza a vida de caminhoneiro no Brasil ficou ainda mais dura e difícil. Mas como é a vida de todo o brasileiro. Principalmente agora, pois não é à toa que se contabilizam 27,7 milhões de pessoas sem emprego ou subutilizada (12,7 milhões de desempregados e mais 15 milhões de pessoas que gostariam de trabalhar mais ou desistiram de procurar emprego. Esse número, calculado pelo IBGE, relativo ao primeiro trimestre de 2018, é o maior desde 2012, quando se iniciou esse tipo de pesquisa. Vida difícil essa do brasileiro, caminhoneiro ou não!

É óbvio que a culpa dessa quase “desgraça” não é somente deste governo, embora ele possa ter contribuído muito para isso. O problema, agravado pela crise iniciada a partir do final de 2013, existe há décadas e é fruto da incompetência, inação, desconhecimento, e até um pouco de má-fé, das classes dirigentes que, ao longo de muitos anos, jamais deu a devida importância ao setor. Como já defendido em artigo publicado na Revista Tecnologística nº 221 (“Pacto Nacional pela Multimodalidade”), escrito em conjunto com o Presidente Executivo da ABOL (Associação Brasileira de Operadores Logísticos), César Meirelles, “é chegado o momento para que o Brasil transforme os diversos diagnósticos, estudos e planos sobre infraestrutura logística em concretas e efetivas realizações e, em especial, aqueles voltados ao desenvolvimento da multimodalidade, o caminho mais inteligente para aproveitar todas as vantagens de cada meio de transporte. É momento de se buscar a integração entre os diversos atores da cadeia produtiva, como única forma para crescimento e desenvolvimento de todos, e não só daquele setor com maior poder de pressão” (grifos meus).  

De fato, o Brasil precisa melhorar em quase todas as atividades que caracterizam a vida em sociedade. Como já salientado, a incompetência, as mazelas, os roubos, a corrupção, a imoralidade, a falta de ética, o descaso, a desfaçatez e tudo o mais, são algumas das características que imperam no cenário brasileiro atual. O transporte rodoviário de cargas é mais um dos setores que sofre com essa “desorganização total” que tomou conta do País. 

Mas, por mais justas que sejam as reivindicações feitas pelo setor, e assim poderiam fazer quase todos os demais setores que compõem a sociedade brasileira, acredito que este não é o momento de mais paralisações ou movimentos grevistas. Muito menos de fazer valer regras que há muito deixaram de fazer parte das políticas que caracterizam as sociedades modernas e mais desenvolvidas, tais como tabelamento de fretes, reserva de mercado, desoneração de impostos ou isenções tributárias sem suas devidas contrapartidas para a sociedade como um todo. Principalmente considerando que temos um governo “de joelhos” e esperando seu ‘tempo terminar’. Pelo contrário, o momento é de convergência e de elaboração de propostas que equacionem problemas estruturais existentes há décadas, estejam voltadas ao interesse comum e resolvam o problema da economia brasileira. 

Não sei se há outra forma fora da Democracia para resolver esse ‘imbróglio’, mas com certeza não é a utilização da força ou do aproveitamento da fragilidade na qual se encontra a maioria de nossas instituições, em especial os atuais poderes constituídos, que serão encontradas as respostas adequadas.

Embora a maioria dos brasileiros, caminhoneiros ou não, ainda continuará sofrendo os impactos negativos da frágil situação em que se encontra o Brasil, a solução somente será encontrada pela via Política, mas desde que praticada com bom senso, sem preconceitos, preservando a liberdade e o direito de todos e, principalmente, sem exigências impossíveis de serem atendidas. 

* Paulo Roberto Guedes é consultor de empresas e professor do curso de Logística Empresarial do GVPec, da EAESP/FGV. É colunista do Guia do TRC.

Curso Tabelas de Frete

Aumente seu conhecimento sobre tabelas de frete com nosso curso abrangente. Aprenda como usar essas informações para melhorar suas decisões de transporte e alcançar uma vantagem competitiva.